A Vida Como Ela Grita #22
Uma tarde em que o sertanejo virou trilha sonora de guerra civil doméstica.
Terça-feira, duas da tarde. Vou até a copa do escritório buscar água para começar o segundo round da rotina da produtora. Enquanto passo pelo corredor, escuto a vizinha lavar o quintal, jogando água, limpando o coco do cachorro e amassando algumas latas [refrigerante, será? Acho que não. Apostaria em cerveja. Skol, se bobear].
Coloco a garrafinha no filtro, enquanto, do outro lado do muro, a vizinha discutia com o cachorro. Aparentemente o Revoada estava se negando a entrar na casinha, porque morder a mangueira era naturalmente muito mais divertido. No fim, foi convencido pela sua dona, que já estava aos berros, parecendo o Max Cavalera nos primórdios do Sepultura. Talentosa.
Com o quintal limpo, ela resolve colocar uma música para relaxar. Justo. Sertanejo universitário [nem sei se a classificação é essa ainda…], tocado a um milhão de decibéis, sendo intercalado por propagandas, denunciando o uso da versão gratuita do Spotify. O som estava tão alto que parecia realmente que eu estava dentro do show do Jorge e Matheus. Na verdade, dentro do próprio rodeio, já que tocou uma variedade bem grande de artistas.
Quando estava prestes a voltar para minha sala [a garrafa de água é grande], as músicas mudaram drasticamente. Em um ímpeto religioso, a vizinha colocou uma playlist gospel, acompanhando as letras com tanta fé e fervor, que eu comecei a desconfiar que talvez Deus fosse surdo. Ou que os pecados dela estavam um tanto difíceis de serem ouvidos. Um dos dois.
Entre um "Jesus vai voltar" e "Deus olha por todos nós" – e eventualmente uma propaganda – chega Caio em sua CG 125, abrindo o portão da casa com a delicadeza de um troll invadindo o Forte da Trombeta no Abismo de Helm, enquanto espanta Revoada para que o cachorro não fuja para a rua.
Caio chegou bravo, gritando, acusando Jenifer de estar com o som muito alto. A discussão mal havia começado e os dois já estavam aos berros, ela com seu gutural a lá Max Cavalera e ele uivando várias gírias das quais eu só compreendi uns 20 por cento. Ele estava nervoso. O agiota do bairro estava em marcação cerrada e se Caio não arrumasse três mil até o fim da semana, não haveria hino religioso nenhum que salvasse a pele deles.
Acho que o nível de compreensão de Jenifer não foi suficiente para que ela entendesse a gravidade da situação. Todo o seu limiar de atenção estava focado na altura incomensurável da caixa de som [que foi quebrada por Caio minutos depois].
Nesse ponto, substituí minha água por um balde de pipoca e um telefone pronto para chamar a polícia e evitar uma tragédia doméstica, enquanto ouvia o melodrama barulhento e diário dos vizinhos.
Minutos depois, o silêncio foi quebrado por sons que, definitivamente, não faziam parte de nenhuma playlist gospel. Caio e Jenifer, entre tapas, gritos e talvez reconciliações carnais, pareciam ter selado a paz como todo casal disfuncional faria. Voltei para a minha sala, com minha garrafinha de água e a certeza de ter ouvido, ao vivo, mais um episódio da radionovela que se desenrola atrás do meu muro.
DICA PARA VOCE ASSISTIR NO FINAL DE SEMANA[OU NÃO]
Eu estou praticamente viciado em qualquer coisa que o Nathan Fielder esta fazendo. Ja indiquei “O Ensaio” por aqui, inclusive. Essa semana, vai mais duas séries dele que são igualmente boas.
NATHAN FOR YOU
THE CURSE
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Pobre Revoada...
Impressionante que a rádionovela da tv e ao vivo, são tão idênticas. Figuras ilustres, belíssimo casal de vizinhos, que por coincidência de uma produtora, vocês poderiam ter.
Grandes histórias por trás dos muros.
PS. Dei risada do Revoada, músicas gospel e a reconciliação, sem contar do agiota, claro!!